A presidente do Iprade, Ana Carolina de Camargo Clève, publicou o artigo “Distritão: os maiores levam tudo – até o nosso modelo democrático”, na edição da Gazeta do Povo de terça-feira (15/6).
Ana Carolina escreve sobre a possibilidade de adoção do distritão – um modelo eleitoral que pode ser aprovado em breve na Câmara dos Deputados por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que tem amplo apoio na casa.
Para ela, aderir ao “distritão” é perder o pouco que nos resta da coesão institucional; é interromper o processo de amadurecimento democrático; é, enfim, dar às costas ao paradigma plural da nossa Constituição.
Confira o artigo na íntegra abaixo:
Os maiores levam tudo — até o nosso modelo democrático
É possível que a democracia funcione e se organize de diversas formas. Não há um modelo pronto e acabado a ser adotado indistintamente por todos os países. Inúmeras variáveis – a exemplo do contexto econômico e social – influenciam na escolha das instituições que regulamentarão cada democracia. E por que isso importa? É que as instituições – aqui definidas como “mecanismos de imposição de regras”, na descrição de Jon Elster – impedirão, na medida do possível, que a sociedade perca seus paradigmas de desenvolvimento.
Registro ainda duas premissas que permeiam a opinião aqui exposta: 1. não há modelo democrático perfeito e 2. ciente da imperfeição dos possíveis modelos, a escolha deve favorecer aquele que mais se amolda à realidade do país. Isto é, deve-se considerar o modelo cujos efeitos colaterais serão os menos danosos.
No Brasil, a Constituição Federal organiza o funcionamento da democracia representativa por meio de um governo presidencialista combinado com o sistema eleitoral de representação proporcional nos parlamentos (à exceção do Senado) e uma estrutura partidária plural.
Esclarecido o desenho constitucional, centro o debate na opção do constituinte pela representação proporcional – tema que acabará tocando no sistema partidário, tendo em vista que os arranjos eleitorais funcionam também como meio determinante desses sistemas, como explica Arend Lijphart.
Mais uma vez a reforma política encontra-se na agenda do Congresso. Pela mídia, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), anuncia que pretende acelerar a votação da PEC que visa alterar o sistema eleitoral vigente. Com a reforma, a eleição dos candidatos ao Legislativo (vereadores, deputados distritais, estaduais e federais) não mais se operaria pela representatividade proporcional, mas pelo chamado “distritão”.
E de que modo? Hoje as cadeiras parlamentares são assumidas tanto por representantes das maiorias quanto das minorias, de maneira que a votação é convertida proporcionalmente em cadeiras – equilibrando as forças políticas presentes na sociedade. Aqui os partidos são extremamente relevantes. Isso porque o eleitor, quando direciona o voto ao candidato, está, a um só tempo, contribuindo para o resultado da votação do próprio candidato e, ainda, para o partido ao qual este pertence. Além disso, no sistema proporcional, também é possível que o eleitor direcione o voto apenas ao partido (voto de legenda) – o que contribuirá para a definição do número de cadeiras a ser preenchido por cada agremiação. De outro lado, caso passe o “distritão”, as cadeiras parlamentares serão conquistadas por aqueles que obtiverem o maior número de votos; ou seja, o método reproduz a essência do sistema majoritário (utilizado para a definição do vencedor nas eleições para prefeito, governador, presidente da República e senadores).
A pergunta que precisa ser feita é: há razão para alteração do sistema eleitoral? Antes de apresentar as justificavas, assertivamente respondo: não.
Em primeiro lugar, porquanto o sistema proporcional, embora mais complexo, obedece a uma coerência institucional. Isso porque o sistema constitucional brasileiro conferiu aos partidos políticos posição de centralidade – logo, toda a nossa engenharia eleitoral respalda-se numa democracia partidária (não à toa, uma das condições de elegibilidade é a filiação partidária e todo o funcionamento das casas legislativas baseia-se na representatividade partidária). Em segundo lugar, em razão de que a representatividade proporcional, justamente por assegurar a participação das minorias, respeita a racionalidade de uma Constituição comprometida com o pluralismo político e com um Estado substancialmente democrático. Por último, há de se alertar que, por meio do “distritão”, a oxigenação da política mediante a entrada de novos atores restaria comprometida. É que, por obedecer a uma lógica mais personalista, as cadeiras seriam assumidas apenas pelos velhos conhecidos (políticos/celebridades) ou, ainda, por aqueles detentores de grande poder econômico – mais um fator de redução da qualidade democrática.
Se comecei dizendo que o desenho das instituições, considerada a respectiva realidade local, é pensado para que dada sociedade não perca seus paradigmas e avanços, concluo afirmando que aderir ao “distritão” é perder o pouco que nos resta da coesão institucional; é interromper o processo de amadurecimento democrático; é, enfim, dar às costas ao paradigma plural da nossa Constituição.