O que as circunstâncias históricas e as constantes notícias nos mostram acerca do papel que a mídia tem exercido sobre as Cortes e sobre o que se entende por Direito como um todo?
Em Estados do Direito, como o é – ou pretende ser – o brasileiro, o julgamento segundo os princípios de existência de um juiz natural e imparcial se vê, hodiernamente, enfraquecido por um amplo acesso dos meios de comunicação aos processos criminais. Graças a isso, é cada vez mais frequente a existência de “julgamentos pela mídia” (trials by media), nos quais os acusados são despidos de sua presunção de inocência tão logo se veem expostos ao escrutínio popular, sobretudo quando há parca busca de veracidade das informações pelos meios jornalísticos e quando no banco dos réus figuram agentes políticos. A Operação Lava-Jato está constantemente a lembrar a todos disso.
A consequência perceptível desse fenômeno é a imediata repulsa à política e aos políticos (passando a ser irrelevante o caráter e a lisura de todos os envolvidos no meio). Às ruas (e principalmente às redes sociais), o voto de condenação, conforme pesquisas apontam, já está proferido: a aversão à política dita “tradicional” e a condenação sumária dos políticos. A consequência sobre a qual se pretende investigar recai sobre os impactos que o escrutínio popular têm sobre o Poder Judiciário.
De início, é certo que a demonização do fenômeno político é fruto de más escolhas de agentes políticos que, por desvios de conduta, são responsabilizados perante o Judiciário e perante seus pares. Mas ele não é só isso. Cada vez mais, os reflexos da criminalização da política, claramente sentidos nas pesquisas eleitorais, demonstram o papel desempenhado pela mídia na veiculação de uma imagem abjeta da política (como um todo), o que leva imediatamente a um desprezo pela política como manifestação do regime democrático. Assim, torna-se fundamental entender o papel crucial desempenhado pelos meios de comunicação, pois a informação política diariamente divulgada é parte do universo simbólico dos cidadãos, responsável também pela formação das convicções.
Diante de tal cenário, a advogada eleitoralista Carla Karpstein inicia com uma provocação: quando se conseguirá criar um liame razoável entre condenar alguém que sequer iniciou um processo e a liberdade de expressão? A Operação Lava Jato, nesse ponto, teve importância fundamental. Desnudou corrupção capilarizada que ninguém poderia imaginar, explica Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay). Mas, como crítico dos excessos da lava jato desde o início, ironiza que o setor estruturado de marketing da lava jato é mais forte e sólido que o setor jurídico. E isso tudo é organizado. Nesse sentido, a espetacularização do processo penal não é à toa, veio de acordo com um programa e uma estratégia de poder que eles tinham. Havia espetáculo de horas nas televisões expondo a vida das pessoas que nem denunciadas eram. Havia uma estrutura de pré-julgamento e intuito de pressionar o poder judiciário. Isso é grave. É grave e isso deve ser discutido porque interfere na vida de todas as pessoas.
A grande mídia tornou-se semideus, argumenta. Essa questão do que é fake e o que é liberdade de expressão talvez seja a questão mais atual que há. Se nenhum poder pode tudo, é claro que a imprensa tem que ter seus limites. Os limites exigem responsabilidade. Para Kakay, “a liberdade de expressão é uma sustentação da liberdade democrática. Mas só poderá subsistir se feita com responsabilidade. Não existe direito absoluto”.
Emerson Cervi, cientista político, observa que é evidente que quando se discute política e mídia, inevitavelmente, chega-se na “Lava Jato”, juntamente com os impactos cada vez mais caracterizados como negativos, institucionalmente. Questiona, no entanto, se há outra faceta dessa midiatização do direito e da política, como uma forma de comportamento de “super exposição” dos agentes públicos do judiciário.
Ora, a mídia tem um poder de influência dilacerante. É preciso estar todos na mesma batalha para manter a absoluta liberdade de expressão sem a espetacularização do processo, explica o advogado entrevistado. Vejo com perplexidade quando se diz que tem que julgar ouvindo a voz das ruas. Tem que ouvir a Constituição. Quando você diz que vai ouvir a voz das ruas, você primeiro faz uma imagem do processo, para depois achar uma saída. Não é essa a segurança jurídica que se quer e espera. Nesse sentido, fala-se em uma real guerra de vaidades. “Há um risco enorme que corremos. E nós corremos de fazer com que o judiciário perca a credibilidade”, complementa.
E a posição que se coloca a Constituição Federal nesse cenário é o que se pretende compreender. “A questão é se o Direito pode reagir aos processos de erosão democrática que vêm em uma velocidade muito maior por conta a mídia digital”, aponta a constitucionalista Profª. Draª. Estefânia Barboza. Segundo sua colocação, a participação do judiciário englobaria também o Ministério Público, como atores políticos que influenciam as eleições. Dentro disso, além das mídias tradicionais, há atores políticos e jurídicos assumindo um papel também político nas redes sociais.
Para Kakay, a criminalização da política foi uma estratégia usada por esse grupo da Lava Jato, de forma que tal instrumentalização fez muito mal para o país. Aponta que a instrumentalização, especificamente, do Ministério Público é gravíssima, porque passou a ser o grande poder nacional. O país foi dividido e esse governo autoritário que está aí, foi gestado exatamente nos excessos do grupo político da Lava Jato. Por exemplo, argumentando, entende que o artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal expressamente autoriza a abertura do inquérito por seu Presidente. Para ele, há um ponto importante de questionamento: para que o inquérito seja absolutamente inquestionável, o Exmo. Ministro Alexandre de Moraes não pode participar de nenhum julgamento, como base do juízo de garantias, à medida que está presidindo uma investigação.
Veja-se. Todo mundo tem o direito de manifestar o que quiser, mas não pode ter um grupo organizado que está pagando para desestabilizar as instituições. Nesse sentido, o inquérito das fake news é importantíssimo, diminuiu consideravelmente o número de ataques. Evitou, pois, a ruptura institucional.
Suscitada, a jornalista Dulcineia Novaes posiciona-se a respeito do chamado espetáculo da notícia: “hoje temos notícias que acabam ganhando dimensão desproporcional, como o caso da Lava Jato e das Fake News. É uma via de duas mãos: tanto a fonte quanto à imprensa, um serve o outro”. Kakay opina que o jornalista que tem a informação, tem o direito de publicar e deve publicar. Mas que a questão da super exposição, essa é perigosíssima, na medida em que a exposição é uma pré-condenação e, além disso, uma condenação acessória.
Segundo ele, essa exposição é negativa. Nunca mais será possível voltar ao sistema de falar só nos autos, mas esse embate, por exemplo, na TV Justiça, demonstra outra realidade. Processo penal é fato, deveria constar nos autos. Isso significa que esses excessos do judiciário, a tensão que se criou no STF, até pela questão específica da presunção de inocência, dividiu o Brasil e o Supremo.
Há que se ter uma discussão séria, a pauta do Supremo não pode ficar só na mão de seu Presidente. Na ADC 43, por exemplo, o Ministro Jobim criou a pauta temática que racionalizou o processo judiciário, mas pelo menos metade tem que ser por parte do plenário. Essa questão da superexposição leva à discussão que teve o Min. Barroso e o Min. Gilmar Mendes em plenário. Imagine-se, pois, o cidadão que está esperando julgar seu caso e assiste aquela discussão. Essa superexposição não interessa ao Poder Judiciário, apenas à vaidade. E finaliza: “a vaidade é terrível”.
Buscando mais uma provocação ao debate, Carla Karpstein observa o fenômeno das milícias digitais, para além das “mídias digitais”, efetivamente. Emerson Cervi observa, nesse ponto, que se vive tempos bastantes paradoxais. O embate que importa quando se olha para os problemas das milícias, não temos mais um mundo digital separado, as milícias estão dentro e fora do mundo digital. Quando enfraquece as instituições, fortalece o personalismo. Quando há meios que favorecem a relação personalista e desfavorecem as instituições, há um combustível e um impulso a mais para as relações personalistas.
Neste pensamento, entende que alguns setores da grande mídia também estimulam as relações personalistas. Mas não se pode cair no exagero para colocar a responsabilidade no meio, já que “o jornalismo do show é anterior ao meio digital, que só acelerou o personalismo, que é muito diferente de populismo”.
Posicionando-se, Kakay argumenta que o que preocupa é que esse personalismo está incrustado no poder judiciário. A última palavra é do Supremo, tem a prerrogativa de “errar por último”. Por isso deve-se ter essa responsabilidade. Esse excesso de força individual, esse personalismo não pode existir, ou segue-se, indubitavelmente, para o ativismo judicial. Hoje, o que se tem de mais importante é a missão de preservar as instituições.
Se o STF tem a responsabilidade de superar precedentes para que não se decida de forma casuística e consequencialista, Estefânia expõe que a preocupação é como regular as milícias digitais sem ferir as liberdades de expressão. Nesse sentido, questiona qual seria o limite e a quem caberia regular esse tema? Afinal, a criminalização poderia trazer um resultado mais efetivo, sem censurar e fragilizar a liberdade de expressão?
Dentro dessa provocação, Kakay, mais uma vez, demonstra uma preocupação, principalmente, quanto toca ao direito eleitoral. Se isso teria força o suficiente para mudar o resultado de uma eleição. “Não penso que criar tipos penais seja a saída. Sempre que o direito penal virou uma saída o país piorou. Isso é uma política punitivista”, completa. Segundo ele, essa solução não deverá vir do direito penal, haja vista que o punitivismo vai sufocando a sociedade como um todo. Há, em verdade, a necessidade de se fazer essa discussão diária a fim de encontrar as saídas dentro dos limites constitucionais.
Sobre uma eventual “autorregulação” das grandes redes, Dulcineia Novaes aponta que a imprensa séria vai continuar nesta linha de atuação. A imprensa está, de certa forma, todo dia batendo na mesma tecla em relação à pandemia. O jornalismo sério, ético e respeitoso vai continuar na mesma forma de atuação. Educar, conscientizar as pessoas, esse é o grande papel. Levar a informação com responsabilidade para a população. E Kakay concorda: “a imprensa livre deve ter a liberdade de errar, pois a liberdade de imprensa é o que nos sustenta”.
Ora, se foi necessário construir um grupo de empresas jornalistas para obter dados que o governo não tem – ou não quer dar –, argumenta que, como responsabilidade de cada cidadão, há que se fazer esse enfrentamento da questão das fake news, porque senão estaremos vivendo uma democracia falsa. Quem pensa que o direito penal é a solução está no século retrasado.
E Kakay continua: não existe vácuo de poder. O poder legislativo foi liquidado. A partir do momento que se tem um legislativo fraco e um executivo irresponsável, há um superpoder judiciário. Sobretudo, há que se resgatar a dignidade do Brasil, para além de resgatar a dignidade do povo brasileiro. “Em relação as fake news, eu diria follow the Money. Quanto à paridade de armas, diria welcome to the jungle”, finaliza Karpstein.
Relatoria:
Coordenação: Paulo Golambiuk
Equipe de Pesquisa:
Emma Palú Bueno
Geovane Silveira
Waldir Franco Félix Júnior
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